Companhias de países asiáticos e árabes lançaram-se numa corrida sem precedentes para comprarem terras de cultivo em países africanos. Tal processo ameaça despojar milhões de africanos mal alimentadas do único bem que possuem: as suas terras.
Nos finais de Agosto do ano passado, ocorreu no Uganda um episódio já bastante frequente, nos dias de hoje, em muitos países africanos. O jornal da oposição The Monitor, citando fontes da imprensa egípcia, publicou a notícia de que o Governo ugandês aceitara pôr à disposição do país dos faraós 850 000 hectares de terreno (o equivalente a 2,2 por cento da sua superfície) para o cultivo, em grande escala, de trigo e de milho. Poucos meses depois, em Novembro, o ministro da Agricultura do Egipto, Amin Abaza, confirmava esta informação, em declarações ao jornal diário La Dépêche, fornecendo os pormenores sobre os sete investidores egípcios que já estavam a realizar estudos de viabilidade relativamente aos tipos de sementes mais apropriados para cultivar nos campos do Uganda.
Adaptar legislação
Este não é o único país africano onde o Egipto procura terras. Segundo Amin Abaza, o seu país «está a estudar seriamente» a possibilidade de empreender outros projectos de agricultura comercial no Sudão, um país que permite ao Governo dispor das terras com bastante facilidade. De acordo com o Unregistered Land Act (1970), qualquer terra, que não esteja registada de forma oficial, pertence ao Governo. Assim, só uns 6 por cento da terra sudanesa estão na posse de privados, pertencendo ao Governo os restantes 94 por cento. Aquela legislação tornou possível que, nos princípios do ano passado, o grupo saudita Al-Rajhi tivesse podido negociar o arrendamento, por 40 anos, de 40 000 hectares de terra de cultivo. Normalmente, o Governo sudanês só concede terras a investidores estrangeiros por um período de três anos, mas o grupo Al-Rajhi mostrou ter tanta força financeira ao desembolsar logo 70 milhões de dólares, que o Governo decidiu isentá-lo dessa limitação de tempo.
Novo colonialismo
Este novo fenómeno está a apanhar muita gente de surpresa. A própria Igreja Católica, que, sobre o tema da terra, tem bastantes documentos, na sua doutrina social, e que em vários países da América Latina pôs em marcha, nas décadas recentes, Comissões da Terra, que têm funcionado com grande eficácia, de modo a evitar que os seus camponeses ficassem sem as suas propriedades, parece ter mostrado, até agora, pouco interesse sobre este tema. Pelo menos, não existem documentos ou directrizes pastorais que alertem os fiéis para esta nova tendência: a corrida pela compra de terras africanas por parte de países estrangeiros, sobretudo árabes e asiáticos. Este processo foi acelerado de forma vertiginosa durante 2008, sobretudo devido à subida dos preços dos produtos agrícolas nos mercados internacionais e ao aumento da produção de biocombustíveis. O director-geral da FAO, o senegalês Jacques Diouf, lançou a voz de alerta contra aquilo que denominou de «um novo colonialismo», em que uma multidão de países pobres está a pôr as suas melhores terras à disposição de nações ricas, à custa dos seus próprios cidadãos mal alimentados.
A prestigiada ONG internacional GRAIN documentou sistematicamente este fenómeno, que qualifica de «uma corrida pela terra que lembra a expansão colonial da Europa». Entre os países que se estão a apropriar de enormes extensões de terreno em África, destacam-se alguns da Ásia como a China, a Índia, o Japão, a Malásia e a Coreia do Sul, bem como países árabes, aos quais sobra dinheiro e falta água: o Egipto, a Líbia, o Bahrein, a Jordânia, o Kuwait, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. Em muitos casos, estão a receber ajuda de organizações internacionais, como o Banco Mundial e o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento, que frequentemente pressionam os países africanos para que mudem a sua legislação e permitam aos estrangeiros aceder à propriedade da terra.
As vítimas
A lista de países africanos, que se apressam a oferecer os seus terrenos ao melhor licitador, a troco de contratos de energia ou de investimentos em infra-estruturas, é longa e aumenta a cada dia que passa: Moçambique, Sudão, Uganda, Angola, Gana, Etiópia, Zâmbia, República Democrática do Congo, Senegal, Tanzânia, Camarões, Zimbabué e Madagáscar.
O problema é que estas terras de cultivo se encontram em países com altos níveis de pobreza e onde as pessoas sofrem de desnutrição. Mais: o galopante aumento da população em África e os estragos causados pelas mudanças climáticas estão a transformar a terra, outrora abundante, num bem escasso. E, como se fosse pouco, os intermináveis conflitos, que têm flagelado muitos países africanos, provocaram a deslocalização de milhões de pessoas que abandonam as suas terras e as deixam expostas à cobiça do primeiro investidor que apareça. No Norte do Uganda, por exemplo, onde a guerra que rebentou em 1986 chegou a deslocar dois milhões de pessoas, começaram a chegar, há dois anos, representantes de companhias indianas à procura de contratos com o Governo para criarem grandes quintas de agricultura comercial, nas terras abandonadas pelos seus donos, há já mais de dez anos. Só a reacção indignada dos parlamentares desta zona e dos seus chefes tradicionais conseguiu paralisar estes projectos que o Governo tinha designado como «desenvolvimento e progresso». Por agora.
Fim do caminho
No fim, muitos camponeses, que não têm outro meio de vida a não ser as suas terras, têm pouca escolha e acabam por emigrar para as cidades onde lhes prometem postos de trabalho em novas unidades industriais, elas também nas mãos de capital estrangeiro, onde acabam por trabalhar em jornadas de mais de doze horas, com salários de 50 dólares por mês e contratos precários. O fim do caminho costuma ser este: ficam sem terras e sem postos de trabalho, engrossando a enorme legião dos novos pobres urbanos dos bairros-de-lata africanos.
A principal debilidade da África, que a expõe de maneira especial a esta nova forma de colonialismo, é o facto de a propriedade tradicional da terra costumar ser comunitária, e de a transmissão de pais para filhos sempre se ter feito oralmente, sem documentos pelo meio. Quem quiser comprar terra na Europa terá de ir e negociar com o seu dono, o qual sempre terá a segurança legal de um título de propriedade. Porém, um mecanismo semelhante não costuma ser habitual em África, onde os camponeses não têm documentos escritos. Quando chega o dia em que se encontram sem as suas terras, não têm mecanismos para as recuperar em tribunal. E, se lhes ocorre aproximarem-se da parcela onde, um dia, os seus avós lhes ensinaram a manejar uma enxada e a distinguir os diversos tipos de sementes, poderão deparar com uma cerca de arame farpado e um cartaz a dizer que para ali vai um projecto assinado por uma poderosa companhia árabe ou asiática, cujo representante nem sequer nunca tiveram a oportunidade de encontrar.
JOSÉ CARLOS RODRIGUEZ, Alem Mar, Maio 2009
Nos finais de Agosto do ano passado, ocorreu no Uganda um episódio já bastante frequente, nos dias de hoje, em muitos países africanos. O jornal da oposição The Monitor, citando fontes da imprensa egípcia, publicou a notícia de que o Governo ugandês aceitara pôr à disposição do país dos faraós 850 000 hectares de terreno (o equivalente a 2,2 por cento da sua superfície) para o cultivo, em grande escala, de trigo e de milho. Poucos meses depois, em Novembro, o ministro da Agricultura do Egipto, Amin Abaza, confirmava esta informação, em declarações ao jornal diário La Dépêche, fornecendo os pormenores sobre os sete investidores egípcios que já estavam a realizar estudos de viabilidade relativamente aos tipos de sementes mais apropriados para cultivar nos campos do Uganda.
Adaptar legislação
Este não é o único país africano onde o Egipto procura terras. Segundo Amin Abaza, o seu país «está a estudar seriamente» a possibilidade de empreender outros projectos de agricultura comercial no Sudão, um país que permite ao Governo dispor das terras com bastante facilidade. De acordo com o Unregistered Land Act (1970), qualquer terra, que não esteja registada de forma oficial, pertence ao Governo. Assim, só uns 6 por cento da terra sudanesa estão na posse de privados, pertencendo ao Governo os restantes 94 por cento. Aquela legislação tornou possível que, nos princípios do ano passado, o grupo saudita Al-Rajhi tivesse podido negociar o arrendamento, por 40 anos, de 40 000 hectares de terra de cultivo. Normalmente, o Governo sudanês só concede terras a investidores estrangeiros por um período de três anos, mas o grupo Al-Rajhi mostrou ter tanta força financeira ao desembolsar logo 70 milhões de dólares, que o Governo decidiu isentá-lo dessa limitação de tempo.
Novo colonialismo
Este novo fenómeno está a apanhar muita gente de surpresa. A própria Igreja Católica, que, sobre o tema da terra, tem bastantes documentos, na sua doutrina social, e que em vários países da América Latina pôs em marcha, nas décadas recentes, Comissões da Terra, que têm funcionado com grande eficácia, de modo a evitar que os seus camponeses ficassem sem as suas propriedades, parece ter mostrado, até agora, pouco interesse sobre este tema. Pelo menos, não existem documentos ou directrizes pastorais que alertem os fiéis para esta nova tendência: a corrida pela compra de terras africanas por parte de países estrangeiros, sobretudo árabes e asiáticos. Este processo foi acelerado de forma vertiginosa durante 2008, sobretudo devido à subida dos preços dos produtos agrícolas nos mercados internacionais e ao aumento da produção de biocombustíveis. O director-geral da FAO, o senegalês Jacques Diouf, lançou a voz de alerta contra aquilo que denominou de «um novo colonialismo», em que uma multidão de países pobres está a pôr as suas melhores terras à disposição de nações ricas, à custa dos seus próprios cidadãos mal alimentados.
A prestigiada ONG internacional GRAIN documentou sistematicamente este fenómeno, que qualifica de «uma corrida pela terra que lembra a expansão colonial da Europa». Entre os países que se estão a apropriar de enormes extensões de terreno em África, destacam-se alguns da Ásia como a China, a Índia, o Japão, a Malásia e a Coreia do Sul, bem como países árabes, aos quais sobra dinheiro e falta água: o Egipto, a Líbia, o Bahrein, a Jordânia, o Kuwait, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. Em muitos casos, estão a receber ajuda de organizações internacionais, como o Banco Mundial e o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento, que frequentemente pressionam os países africanos para que mudem a sua legislação e permitam aos estrangeiros aceder à propriedade da terra.
As vítimas
A lista de países africanos, que se apressam a oferecer os seus terrenos ao melhor licitador, a troco de contratos de energia ou de investimentos em infra-estruturas, é longa e aumenta a cada dia que passa: Moçambique, Sudão, Uganda, Angola, Gana, Etiópia, Zâmbia, República Democrática do Congo, Senegal, Tanzânia, Camarões, Zimbabué e Madagáscar.
O problema é que estas terras de cultivo se encontram em países com altos níveis de pobreza e onde as pessoas sofrem de desnutrição. Mais: o galopante aumento da população em África e os estragos causados pelas mudanças climáticas estão a transformar a terra, outrora abundante, num bem escasso. E, como se fosse pouco, os intermináveis conflitos, que têm flagelado muitos países africanos, provocaram a deslocalização de milhões de pessoas que abandonam as suas terras e as deixam expostas à cobiça do primeiro investidor que apareça. No Norte do Uganda, por exemplo, onde a guerra que rebentou em 1986 chegou a deslocar dois milhões de pessoas, começaram a chegar, há dois anos, representantes de companhias indianas à procura de contratos com o Governo para criarem grandes quintas de agricultura comercial, nas terras abandonadas pelos seus donos, há já mais de dez anos. Só a reacção indignada dos parlamentares desta zona e dos seus chefes tradicionais conseguiu paralisar estes projectos que o Governo tinha designado como «desenvolvimento e progresso». Por agora.
Fim do caminho
No fim, muitos camponeses, que não têm outro meio de vida a não ser as suas terras, têm pouca escolha e acabam por emigrar para as cidades onde lhes prometem postos de trabalho em novas unidades industriais, elas também nas mãos de capital estrangeiro, onde acabam por trabalhar em jornadas de mais de doze horas, com salários de 50 dólares por mês e contratos precários. O fim do caminho costuma ser este: ficam sem terras e sem postos de trabalho, engrossando a enorme legião dos novos pobres urbanos dos bairros-de-lata africanos.
A principal debilidade da África, que a expõe de maneira especial a esta nova forma de colonialismo, é o facto de a propriedade tradicional da terra costumar ser comunitária, e de a transmissão de pais para filhos sempre se ter feito oralmente, sem documentos pelo meio. Quem quiser comprar terra na Europa terá de ir e negociar com o seu dono, o qual sempre terá a segurança legal de um título de propriedade. Porém, um mecanismo semelhante não costuma ser habitual em África, onde os camponeses não têm documentos escritos. Quando chega o dia em que se encontram sem as suas terras, não têm mecanismos para as recuperar em tribunal. E, se lhes ocorre aproximarem-se da parcela onde, um dia, os seus avós lhes ensinaram a manejar uma enxada e a distinguir os diversos tipos de sementes, poderão deparar com uma cerca de arame farpado e um cartaz a dizer que para ali vai um projecto assinado por uma poderosa companhia árabe ou asiática, cujo representante nem sequer nunca tiveram a oportunidade de encontrar.
JOSÉ CARLOS RODRIGUEZ, Alem Mar, Maio 2009
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