quinta-feira, 4 de março de 2010

Superpotências: ao assalto da África


No século XXI, África constitui-se definitivamente como fornecedor de recursos naturais das duas superpotências. A China não impõe contrapartidas políticas, enquanto os Estados Unidos não são indiferentes aos problemas de segurança e às emergências humanitárias. A não ingerência de Pequim é mais sedutora para os Estados africanos.

Com a ascensão da China ao estatuto de superpotência, o novo milénio apresenta-se como um mundo bipolar tendo como centros Washington e Pequim. A nova realidade é visível especialmente no relacionamento do G2, a China e Estados Unidos, com África. Os países do continente menos desenvolvido passaram a contar com as opções das vias norte-americana ou chinesa. Pequim oferece a harmonia ao proclamar a ajuda ao desenvolvimento sem pré-condições e ao prezar a paz, desenvolvimento e comércio e ignorar modelos políticos ou económicos. O gigante asiático não está nos negócios com África para exportar modelos de desenvolvimento ou projectos políticos, em oposição aos Estados Unidos, que pretendem contrapartidas como mais democracia, liberdade, direitos humanos e o domínio da lei.
O Governo de Hu Jintao pretende apenas fazer negócios em paz sob a sua concepção do mundo em que o crescimento é o objectivo absoluto. Uma visão estratégica assente na convicção de que a economia resolverá a maioria dos problemas de direitos e desenvolvimento humano do continente. Esta ênfase na harmonia abona a favor de Pequim, tanto mais que rivaliza com a estratégia de compensações norte-americana. «Se o consenso de Washington é ideologicamente intervencionista, o emergente consenso de Pequim parece ideologicamente agnóstico», observa Roger Cohen, colunista do diário «The New York Times».
Enquanto a Administração norte-americana condiciona a ajuda a África à democracia e combate à corrupção, a China faz acordos energéticos sem pré-condições como o estabelecido no FOCAC, o fórum de cooperação China-África. Os países africanos têm agora uma superpotência alternativa e podem desvalorizar não só os Estados Unidos, como o G8, grupo dos países mais industrializados, e as ONG de ajuda ao desenvolvimento, muito preocupadas com a boa governabilidade e os direitos humanos.

Carregar fardos

Ao fazer diminuir a influência norte-americana, a abordagem chinesa tem como consequência a ajuda a presidentes ditadores, ainda que os Chineses usem discretamente o seu novo poder, como se verificou nas eleições presidenciais de 2008 na Zâmbia, onde a China fez importantes investimentos na mineração e processamento de cobre. Quando Michael Sata, candidato da oposição, denunciou as condições de trabalho oferecidas pela China aos trabalhadores, Pequim deixou bem claro que a Zâmbia sairia prejudicada se Michael Sata vencesse. O eleito viria a ser Rupiah Banda, do partido no poder. «Uma superpotência retraída é um paradoxo. A harmonia pode ser a meta, mas as divergências fazem parte do fardo global que qualquer superpotência terá de carregar», esclarece o colunista Roger Cohen.
No conflito que devasta o Darfur (Sudão) desde 2003 e já provocou 200 mil mortos e dois milhões de deslocados, só em 2007 a China aceitou participar na UNAMID, a força de manutenção da paz das Nações Unidas e União Africana. Fornecedora de armas ao país, em troca de facilidades na compra da maior parte da sua produção petrolífera, a China era um dos principais aliados do presidente sudanês, Omar al-Bechir, que se opunha ao destacamento de 20 mil capacetes azuis para a região.
A China é também criticada por vender armas a governos africanos que figuram na lista de desrespeito pelos direitos humanos dos países ocidentais. Jendaye Frazer acredita que «à medida que investir e celebrar mais contratos, a China sentir-se-á tentada a promover o primado da lei», disse a responsável do escritório para África do Departamento de Estado norte-americano. Os Estados Unidos estão agora a encorajar a China a apoiar a EITI, a iniciativa de transparência para a indústria extractiva em África.
Em Agosto, a secretária de Estado norte-americana fez um périplo por sete países da África para fazer frente à influência da China no continente. A viagem de Hillary Clinton aconteceu três semanas depois de o presidente norte-americano, Barack Obama, ter visitado o Gana e dito aos líderes africanos para agirem de forma mais responsável, alertando que, para receber ajuda ocidental, é preciso haver boa governabilidade.
O director-executivo do Institute for Global Dialogue, uma organização independente sul-africana, admite que «o compromisso da China com a África não está exactamente de acordo com as expectativas ocidentais», afirma Garth lePere. Os princípios nos quais se baseia a política chinesa são resultado da teoria do ex-presidente Jiang Zemin (1993 a 2003), que privilegia os benefícios mútuos, desenvolvimento comuns e a não interferência nos assuntos internos.
Por sua vez, o embaixador norte-americano no Jibuti, James Swann, diz que os Estados Unidos não vêem «o envolvimento de alguns países em África como algo que necessariamente exclui outros». Contudo, não deixa de apelar a que a China respeite as «normas internacionais». O CSIS, centro de estudos estratégicos internacionais, conclui que a «ofensiva chinesa em África poderá beneficiar o continente de um modo construtivo e fazer aumentar o estatuto de África em termos geopolíticos».

Má fama

O petróleo é a fonte de energia dos compromissos do G2 com África. Pequim gasta milhares de milhões de dólares para assegurar direitos de exploração de petróleo na Nigéria, Sudão e Angola. Também assinou acordos de exploração com a RD Congo e Etiópia. África representa 25 por cento das importações de petróleo feitas pela China, que tem a intenção de aumentá-las para diversificar os seus fornecedores.
Em 2005, o continente africano forneceu aos Estados Unidos 18 por cento das suas importações de petróleo, mais do que os Estados Unidos importam actualmente do Médio Oriente. Na próxima década, prevê Brett Schaefer, da Heritage Foundation, «as exportações africanas de petróleo duplicarão» e as importações norte-americanas de petróleo africano alcançarão os 25 por cento. Cada vez mais, a instabilidade e as crises humanas como a do Darfur estão a obter maior atenção dos Estados Unidos, «primeiro por preocupações humanitárias, mas também por causa de interesses estratégicos», comprova Brett Schaefer.
A companhia petrolífera nacional chinesa está particularmente activa no Sudão, onde construiu um oleoduto para o mar Vermelho e uma refinaria em Cartum. Também controla a maior parte de um campo de petróleo no Darfur. Além do Sudão, a China está activa em Angola, onde concedeu uma ajuda de 2 mil milhões de dólares para garantir direitos de exploração petrolífera. Na Zâmbia, a China investiu 170 milhões de dólares no sector da extracção de cobre. Pequim está ainda a investir em actividades na área do cobalto e do cobre na RD Congo, a explorar madeira no Gabão e na Libéria e profundamente envolvida no Zimbabué.
Esta competição por recursos está a levar a China a uma abordagem muito exploradora de África. «Os Chineses investem na exploração dos recursos e em troca apoiam os mais autoritários, chauvinistas e maus políticos», denuncia Radha Kumar, directora do Nelson Mandela Centre for Peace and Conflict Resolution. A investigadora indiana assinala que «ainda não há suficiente força nos partidos políticos das democracias africanas para resistirem ou negociarem contra uma abordagem expropriadora de África». Radha Kumar insiste que «os recursos não são tão importantes que justifiquem a má fama», sentencia.

Harmonia vs. Democracia

Em 2008, o comércio entre a China e os países africanos atingiu a soma recorde de 107 mil milhões de dólares, um aumento de 45 por cento em relação ao ano anterior. Ao contrário do que acontece com os Estados Unidos, país com que a China tem elevados excedentes comerciais, no caso de África, o saldo da balança comercial é favorável aos países africanos. O regime comunista tornou-se o maior exportador para o continente africano, com uma quota de quase 10 por cento do mercado, em 2007, de acordo com o US Department of Commerce. Os Estados Unidos continuam em segundo plano, com 5 por cento das exportações. Em 2008, o volume de negócios de África com a China atingiu 104 mil milhões de dólares e com os Estados Unidos 267 mil milhões de dólares, segundo o diário económico «Finantial Times».
Para suportar estas relações comerciais, Pequim e a União Africana institucionalizaram o diálogo estratégico no FOCAC, fórum que em 2008 reuniu 48 dos 53 países do continente em Adis-Abeba (Etiópia). Na altura, o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, visitou o Egipto, Gana, RD Congo, Angola, África do Sul, Tanzânia e Uganda. Pouco antes, o presidente, Hu Jintao, tinha visitado Marrocos, Nigéria e Quénia.
Esta intensa actividade diplomática leva a superpotência asiática a colaborar com alguns regimes ditatoriais de África. A Amnistia Internacional acusa Pequim de incentivar conflitos e violações de direitos humanos ao vender armas para regimes repressivos como os do Sudão e Zimbabué em troca de petróleo e minério. O vice-primeiro-ministro chinês, He Yafei, defende ser «tendencioso ou equivoco dizer que os vínculos de Pequim com África são apenas por causa do petróleo», esclarecendo que «a intenção da cooperação sino-africana é o benefício recíproco». Como parte das contrapartidas, a China oferece assistência económica e técnica, empréstimos sem juros e créditos preferenciais. Empresas chinesas participam na construção de estradas, hospitais, obras sanitárias, palácios e recintos desportivos. Cerca de nove centenas de projectos de investimento estão a ser financiados com dinheiro chinês.
O mundo bipolar sino-americano é uma nova era de disputa entre capitalismo democrático e capitalismo de partido único, uma luta entre a liberdade pluripartidária de Washington e o crescimento sem pré-condições mais sedutor de Pequim.
Os Estados Unidos desejam cooperar com a China na ajuda ao desenvolvimento de África. Em 2008, a responsável pelo Bureau of African Affairs admitiu a existência de oportunidades para que Washington e Pequim cooperem com o continente na construção de infra-estruturas, na agricultura e saúde. Segundo Jendaye Frazer, a ajuda coordenada das duas superpotências poderia evitar a duplicação de projectos e conduzir a uma maior racionalidade e eficiência de utilização dos recursos. Mas, para que essa colaboração aconteça, sublinhou Jendaye Frazer, a China terá de ser mais transparente na concessão de financiamentos e nos critérios de alívio da dívida aos países africanos. «Não pretendemos ver as dívidas serem canceladas, por um lado, e, por outro, a China levar os países africanos a um endividamento insustentável», disse.
Em Novembro, o presidente americano, Barack Obama, fará sua primeira visita presidencial à China para estreitar laços entre os Estados Unidos e o país asiático. Segundo o embaixador norte-americano em Pequim, Jon Huntsaman, «nunca houve um período mais importante para que os Estados Unidos e a China se unam e descubram os seus interesses em comum». África é um dos mais valiosos.



Carlos Reis, Além Mar, Novembro 2009

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