terça-feira, 2 de março de 2010

II Sínodo africano: quando a igreja «faz política»


A situação em que se encontra o continente africano desafia a missão cristã a desenvolver uma sua práxis de transformação social. A evangelização da África, feita a partir da Europa durante o século XIX, foi expressão do empenho dos católicos europeus no campo social. Um empenho, o do apostolado social, que o presente sínodo está chamado a relançar valorizando os leigos e as mulheres, em especial.

De 5 a 25 do mês de Outubro de 2009, celebrou-se em Roma o II Sínodo Africano sob o tema: «A Igreja em África ao serviço da reconciliação, da justiça e da paz». Os participantes iniciaram as suas reflexões a partir do Documento de Trabalho (Instrumentum Laboris) entregue ao episcopado africano por Bento XVI em Yaoundé (Camarões), a 19 de Março, durante a sua primeira viagem à África.

Pontos importantes

Nos primeiros dois capítulos do Documento de Trabalho, há duas temáticas que considero importante sublinhar. Primeiro, a necessidade que o mundo aprenda a viver uma «coexistência planetária», porque o pluralismo das raças, das religiões, das etnias e das classes sociais não é um fenómeno limitado à África, mas presente em todas as cidades ocidentais. Segundo, a urgência de reconhecer a «subjectividade africana» com vista a uma nova reorganização da ordem mundial: um continente com mil milhões de pessoas (e 200 milhões de filhos e filhas espalhados na diáspora negra), com imensos recursos, muitos dos quais indispensáveis ao desenvolvimento do mundo inteiro, não pode continuar a ser totalmente ignorado, sob pena de uma crescente desestabilização, destinada a gerar sempre novas vagas de migrações e emergências humanitárias de difícil gestão.
As religiões e as Igrejas – em particular a Igreja Católica – podem dar um contributo específico quer à construção da «subjectividade africana», indispensável para a solução dos muitos problemas internos ao continente, quer ao nascimento de um «protagonismo negro» no contexto de uma coexistência planetária.
Neste texto pretendo comentar brevemente o terceiro e quarto capítulos do documento de trabalho, que apresentam a Igreja como «actor social» e detentora da uma sua «práxis de transformação em campo social».

Sacramento de salvação

Parafraseando João Paulo II, o texto diz: «A Igreja torna-se sinal visível e instrumento de justiça, de paz e de reconciliação operadas por Cristo em benefício do género humano, quando ela vive em coerência com a sua identidade de “sal da terra” e “luz do mundo”» (89). No bem e no mal, a Igreja sempre foi um «actor social». No bem, quando a sua atenção aos pobres e o seu empenho em defender a dignidade de cada pessoa humana – imagem de Deus – foram sentidos e vividos como dois dos sinais mais característicos da sua fé em Jesus Cristo. No mal, quando a comunidade eclesial se deixou manipular pelos poderes políticos e se tornou serva deste ou daquele regime e defensora do status quo. O verdadeiro rosto da Igreja «sacramento de salvação» deve ser procurado sobretudo na vida dos santos, isto é, daqueles que acolheram os carismas-dons do Espírito e produziram frutos de justiça, paz e reconciliação.
A onda de evangelização da África, verificada no século XIX, coincidiu com o início, na Europa, de um empenho sistemático em campo social por parte dos católicos, em resposta às problemáticas surgidas com as grandes revoluções oitocentistas, sobretudo a industrial. (A reflexão teológica por parte do magistério chegou mais tarde, em Maio de 1891, com a promulgação da encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, com a qual, pela primeira vez, a Igreja Católica tomava posição em relação às questões sociais.) Todos os grandes evangelizadores que naquele tempo dirigiram a sua atenção (e as forças dos institutos por eles fundados) para a África estavam animados por um espírito marcadamente social. E é por isso que, ainda hoje, a ligação entre anúncio evangélico, vida de fé e transformação social é muito mais sentida neste continente que em outros. Na Ásia e nas Américas a evangelização tinha tido lugar nos séculos XVI e XVII, quando a relação entre vida de fé e problemas sociais era vivida geralmente a nível de «caridade» e de «esmola», e a missão era de natureza quase exclusivamente religiosa. Também em África os missionários entraram com a mensagem religiosa em primeiro plano, mas no seu modo de trabalhar a atenção pelo social constituía uma parte integrante da evangelização, sobretudo por se terem deparado com problemas de carácter social e cultural de enormes dimensões (escravatura e tráfico esclavagista, condições miseráveis em que a mulher se encontrava, doenças devastadoras…) e terem sentido a urgente necessidade de uma organização social mais em linha com a acelerada e inevitável modernidade.

No feminino

O chamado «apostolado social» em África teve um salto de qualidade com a chegada e a presença das mulheres entre o pessoal missionário. Tratava-se de uma novidade inteiramente nova. Antes de 1800, as missionárias estavam totalmente ausentes da África; em 1914, pelo contrário, eram a maioria. Na mulher missionária a opção da Igreja pelos pobres atingiu níveis nunca antes conseguidos. A sua amorosa atenção aos últimos (como os portadores de deficiências físicas e psíquicas), o seu incansável cuidado dos doentes nos hospitais e nos dispensários, a sua proximidade aos doentes de lepra (símbolo dos excluídos e dos rejeitados), o seu empenho na escola faziam dela um autêntico «agente de mudança social». A importância da sua presença não desvaneceu na África de hoje. E o Instrumentum laboris podia e deveria ter reconhecido mais explicitamente o seu papel no processo de reconciliação, na luta pela justiça e paz no continente, mesmo em espaços dominados ou dependentes da hierarquia eclesial ou dos sacerdotes.
Também a «regeneração da África» propugnada por São Daniel Comboni no seu Plano de 1864 implicava uma clara dimensão social, para além de religiosa. «A missão está ao serviço da fé e da civilização». O Instrumentum laboris faz uso de categorias certamente mais bíblicas («a justiça do Reino»; «a paz do Reino»; «Reino e justiça de Deus»; «igreja, sacramento de reconciliação»…), mas estas correm o risco de perder o carácter concreto e o relevo que elas têm na Bíblia, se destituídas da sua dimensão social.

Actor social

Considero importantíssimo que o Instrumentum laboris sublinhe várias vezes que a Igreja é chamada a trabalhar no contexto social e a assumir as suas responsabilidades diante das transformações em curso na sociedade africana. Frequentemente, de facto, também em África como no resto do mundo, políticos e analistas da coisa pública não escondem um certo ressentimento quando vêem as comunidades cristãs e religiosas intervir de maneira directa na análise e na solução de problemas sociais. Acusam a Igreja de «fazer política», em vez de ficar tranquila no seu mundo espiritual e dentro das paredes da sacristia. Tentam inclusive corroborar a sua tese citando um versículo do Evangelho: «Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus» (Mt 22,21), pensando com isso justificar uma total separação entre religioso, social e político.
Não pode haver dúvidas: da forma como Jesus Cristo associou de maneira indivisível a fé em Deus ao amor do próximo, a ponto de fazer do segundo a «prova» do primeiro, a atenção ao pobre e ao marginalizado e o empenho em eliminar as causas da pobreza e da marginalização tornaram-se características essenciais do cristianismo.
Perante os problemas sociais, a Igreja não pode fugir. Pode hoje parecer surpreendente ler na Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo (Gaudim et Spes), aprovada em Dezembro de 1965 pelo Concílio Vaticano II, uma afirmação como a seguinte: «A missão própria confiada por Cristo à sua Igreja, não é de ordem política, económica ou social: o fim que lhe propôs é, com efeito, de ordem religiosa» (42). E apesar de logo a seguir precisar que «justamente desta mesma missão religiosa derivam encargos, luz e energia que podem servir para o estabelecimento e consolidação da comunidade humana segundo a lei divina» (ib.). Deve-se, por isso, ter presente que aquela afirmação é uma citação quase literal de uma passagem do Discurso de Pio XII a cultores de história e de arte, no longínquo Março de 1956. Desde então registou-se uma notável evolução, até mesmo no magistério eclesial, acerca das estreitas relações existentes entre social, cultural, político e religioso. Recentes estudos de antropologia social e de teologia bíblica demonstram que estes âmbitos da vida humana não podem nunca ser totalmente separados.
É de esperar, portanto, que o sínodo africano saiba elaborar uma definição de Igreja como «actor social» de pleno direito. Só assim a fé poderá mostrar que tem um relevo também histórico: precisamente aquele relevo que Cristo, o Deus incarnado, quis que tivesse. Isso não significa propor e defender regimes teocráticos. Significa, pelo contrário, «relatar» ao mundo as interessantes experiências que as Igrejas do continente têm tido – e continuam a ter – nos mais diversos contextos sociais, muitas vezes em colaboração com outras religiões (Islão, Hinduísmo…). O sínodo pode revelar-se uma ocasião propícia para uma profunda reflexão sobre estas experiências, também em vista de um enriquecimento de todo o tratado de eclesiologia, especialmente em matéria de relações Igreja-mundo.

Justiça, paz e... leigos

A criação do Conselho Pontifício da Justiça e da Paz e a difusão das comissões «Justiça e paz» em todas as conferências episcopais nacionais e em cada uma das dioceses e paróquias são passos positivos neste sentido. O Instrumentum laboris fala longamente delas, em particular no capítulo IV.
Aquilo sobre o que o sínodo se deverá interrogar (disposto também a rever inteiramente a questão) é a competência daqueles que, em geral, são propostos para estas comissões e a incidência que eles têm sobre o resto da pastoral eclesial. É hora de os bispos africanos (e não só) aceitarem de bom grado o reiterado convite expresso nos documentos oficiais da Igreja (veja-se o decreto sobre o apostolado dos leigos, Apostolicam Actuositatem, do Vaticano II, e a exortação apostólica pós-sinodal sobre a vocação e missão dos leigos na igreja e no mundo, Christifideles laici, de João Paulo II) a reconhecer que nestas comissões o papel proeminente compete aos leigos. A ordenação sacerdotal ou episcopal não garante a adequada competência exigida pelo apostolado social, que implica contínuos contactos com a sociedade civil e com a comunidade internacional. Tal competência é determinada pela comunidade civil e política, e a Igreja deve adaptar-se a ela, se quiser ser um interlocutor credível. Corre-se o risco do ridículo quando se pretende que a «competência» prescrita pelo direito canónico para a ordenação sacerdotal se possa considerar garantia suficiente para qualquer tipo de presença eclesial no mundo. A este propósito, não se pode deixar de dar o próprio assentimento ao seguinte trecho do Instrumentum laboris: «Um desenvolvimento da liderança dos leigos entre as Igrejas dos vários continentes favoreceria o intercâmbio de peritos nos diversos âmbitos que concernem a paz e a justiça, e poderiam colaborar nas instâncias internacionais pela causa da justiça e da paz em nome da sua fé comum em Jesus, Príncipe da Paz» (122).

Magistério social

Os muitos documentos dos papas, do Conselho Pontifício para a Justiça e a Paz, das conferências episcopais e de cada um dos bispos sobre os problemas sociais constituem já uma doutrina vastíssima. Doutrina que, no entanto, não chega a incidir sobre a vida dos cristãos e da sociedade. O motivo é fácil de indicar: este ensinamento, embora definido por João Paulo II «parte essencial do anúncio evangélico hoje», é ignorado na catequese ordinária; mesmo textos fundamentais como o Catecismo da Igreja Católica não lhe fazem uma alusão explícita; para não falar das homilias dominicais pronunciadas nas nossas igrejas, que fazem deste ensinamento «o ensinamento da Igreja mais bem guardado».
Há depois o problema da metodologia a seguir, quando se pretendem analisar os problemas sociais. Na carta apostólica Octagesima Adveniens, publicada em 1971 por ocasião do 80.º aniversário da Rerum Novarum, nas vésperas do importante sínodo dos bispos sobre a justiça no mundo, o Papa Paulo VI dera orientações muito precisas sobre como um magistério social dos bispos deve ser desenvolvido. Mas também este texto permaneceu letra morta. Um verdadeiro magistério social dos bispos exigiria, por sua vez, um contacto permanente com as instituições académicas e com os leigos católicos envolvidos no mundo político, económico e social; contactos que ainda não existem.
O Instrumentum laboris menciona os vários organismos envolvidos naquela que deveria ser uma práxis de transformação social cristã, como também os actores deste «ministério». É dado grande destaque aos actores hierárquicos, dando quase a impressão de que a hierarquia seja o primeiro protagonista, quando, de facto, são os leigos e os religiosos. Neste texto, é descrito brevemente aquilo que fazem, mas não se avalia o seu impacto real e não se arriscam pistas novas. Se o documento final do sínodo se assemelhar ao Instrumentum laboris será uma manta de citações de documentos passados, todos escritos no século XX ou até antes, dirigido a um mundo e a uma África que vivem um hoje totalmente diferente de ontem. E terá sido uma ocasião perdida.


Francesco Pierli, Além-Mar, Outubro 2009

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