terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Igreja em África: uma voz profética


Os bispos africanos embocaram o caminho da profecia. Esta é uma das conclusões que se podem tirar de um balanço do recente sínodo dos bispos para a África. Com grande lucidez e coragem, os pastores das comunidades eclesiais de África analisaram os males do continente e indicaram o caminho para sair deles.

Isso pareceu-me claro desde a «Relação antes do debate», feita por uma das figuras eclesiais mais significativas do continente, o cardeal Peter Turkson, arcebispo de Cape Coast (Gana) e recentemente nomeado para presidir ao Conselho Pontifício para a Justiça e a Paz, ao falar precisamente da dívida externa de 230 biliões de dólares. «Este contínuo financiamento dos bancos nacionais, recorrendo a empréstimos», disse o cardeal Turkson, «não faz senão aumentar uma dívida nacional insuportável…» E acrescentou de seguida: «A saída da África da sua agonia económica deve ser obra dos africanos e orientada por eles próprios. Por isso os corações precisam de ser convertidos e os olhos abertos para encontrar novos modos de utilizar a riqueza pública para o bem comum; e isso cabe à missão evangelizadora da Igreja no continente e nas ilhas.»

Comprimento de onda

E neste comprimento de onda se inseriram os mais de cem bispos que intervieram depois do cardeal Turkson. Com análises corajosas da sua realidade, a começar pela implacável análise política dos 53 países que compõem a África. «Uma nova estirpe de ditadores está a substituir a anterior», afirmou o arcebispo emérito de Campala (Uganda), cardeal Wamala. De facto, esses não acreditam em nenhum princípio democrático sólido. Acreditam num único princípio e esse é o da engenharia política. É este estilo de liderança que dá origem aos conflitos.»
Situou-se na mesma linha o arcebispo de Durban (África do Sul) W. Napier: «É verdade que desde o Sínodo de 1994 houve poucos golpes de Estado em África, mas o monstro que tenta usurpar o poder não desapareceu. Pelo contrário, mudou de aspecto e modus operandi. Não haverá indivíduos que se proclamam “presidentes vitalícios”, mas cada vez há mais partidos políticos que assumem essa função.» E aponta o dedo contra partidos que lutaram pela libertação, como no Botsuana, Angola, Zimbabué e Moçambique, e que agora continuam a governar, “identificando-se” com o Estado. «O partido, nestes casos, já fez um efectivo golpe de Estado», declarou o arcebispo Napier. «Ainda mais grave, quando o partido se declara a favor dos pobres, mas os seus representantes enriquecem de forma descarada.» E conclui: «Rezemos para que o milagre aconteça, isto é, a libertação não dos colonizadores, mas da ditadura do poderosíssimo partido que se apropriou do poder num silencioso golpe de Estado!»
A ainda sobre a vertente política, muitos bispos fizeram notar que os conflitos étnicos em África são criados para se chegar ao poder. «Homens políticos servem-se dos conflitos étnicos para conquistar o poder e mantê-lo», disse o arcebispo de Gitage (Burundi), S. Ntamwana. «Alguns deles consideram a sua função unicamente como fonte de enriquecimento pessoal e das suas famílias e dos seus amigos, fazendo desse modo triunfar o clientelismo e o tribalismo sobre os valores autênticos e comprometendo a paz social.»

Campo económico

Igualmente duras as análises episcopais em campo económico. «As multinacionais exploram os recursos naturais em África de uma forma que não tem precedentes na História», disse o bispo de Umuahia (Nigéria), L. Ugorji. «Esta exploração irreflectida do ambiente tem depois um impacto negativo sobre os Africanos e ameaça as suas perspectivas de viver em paz.» Sobre as multinacionais os bispos martelaram muito, mas também sobre a finança internacional. «Como todos os países organizados, as jovens nações da África tiveram de recorrer aos bancos internacionais para realizar numerosos projectos tendentes ao desenvolvimento. Muitas vezes os dirigentes, pouco preparados, não estiveram suficientemente atentos e caíram nas armadilhas daqueles que os entendidos chamam “assassinos financeiros”, chacais mandados por organismos habituados aos contratos desleais, destinados a enriquecer a finança internacional que conjura no silêncio e na mentira.»
Também a situação dos agricultores e da agricultura africana mereceu muita atenção. «A Igreja em África deve lutar pelos agricultores e pela gente da pastorícia», disse o bispo de Songea (Tanzânia), M. Songea, «os quais devem merecer uma adequada consideração no orçamento do Estado, com garantia de boas infra-estruturas de base e com séria possibilidade de mercado, bem como a possibilidade de ser introduzidos na poupança e na micro finança.»

Insegurança alimentar

Os bispos ouviram com muita atenção a relação do secretário-geral da FAO, Jacques Diouf, enviado especial ao sínodo. «A África em 2050 contará dois mil milhões de habitantes – o dobro de hoje –, ultrapassando assim a Índia e a China e representará o maior mercado do mundo.» Jacques Diouf acrescentou: «Em África, apesar dos importantes progressos realizados em muitos países, o estado de insegurança alimentar é muito preocupante. O continente conta actualmente 271 milhões de pessoas desnutridas, ou seja, 24 por cento da população com um aumento de 21 por cento relativamente ao ano anterior. Além disso, dos trinta países no mundo em estado de crise alimentar, que precisam de ajuda urgente, vinte encontram-se em África.» O secretário-geral da FAO afirmou ainda que «é impossível acabar com a fome e a pobreza em África, sem aumentar a produtividade agrícola».
É claro que a África paga actualmente a falência financeira e o uso das terras cultiváveis para os biocombustíveis. Este processo faz diminuir a produção dos produtos alimentares e faz aumentar os seus preços.

Nova colonização

Os bispos salientaram a nova “colonização” da África com a aquisição de enormes extensões de terrenos sobretudo para os biocombustíveis. Um bispo do Madagáscar disse-me: «A Daewoo comprou no nosso país 1,3 milhões de hectares de terras. E desencadeou a revolução popular.» E ligado ao controlo da terra está o controlo dos recursos hídricos por parte de grandes empresas agrícolas e multinacionais. O problema da privatização da água é visto por muitos bispos africanos como um problema muito grave em África.
Neste âmbito agrícola, Mons. I. Chama, bispo de Mpika (Zâmbia), disse que partindo da injustiça, é preciso enfrentar a questão de política internacional, como os EPA (Economic Partenership Agreement – acordos de parceria económica) entre a África e a União Europeia. Este é um tema de escaldante actualidade. É claro que esta difícil situação económica e financeira da África leva depois a conflitos e a guerras. E aqui os bispos foram muito duros sobre o comércio das armas, sobre as despesas militares, sobre os conflitos e sobre as guerras. Uma das guerras mais terríveis em África foi a do Congo (fala-se em 4 milhões de mortos!). Vários bispos congoleses voltaram com determinação a esta história. «Partindo das guerras e violências sofridas pela República Democrática do Congo», disse M. Lola, bispo de Tshumbe, «somos obrigados a condenar as mentiras e os subterfúgios usados pelos predadores e mandantes destas guerras e violências. O tribalismo evocado para justificar estas guerras não passa de uma desculpa. A comunidade internacional limita-se a ocupar-se das consequências da guerra, em vez de enfrentar as causas de forma determinante: o saque dos recursos naturais.» E o bispo de Bokungu-Ikela (Congo), Mons. F. Besungu, fala de «máfia internacional» que tem como cúmplices alguns congoleses para depredar as imensas riquezas do Congo. (Recordamos particularmente o coltan!). E são muitos os conflitos ainda em curso na África, do Congo à Somália, do Chade ao Sara Ocidental, do Norte do Uganda ao Darfur. Sobre este assunto, fez uma interessante relação R. Adada, antigo representante especial da ONU e UA (União Africana) no Darfur, que disse: «Não existe solução militar para o problema do Darfur, não pode existir. Ninguém tem meios para o vencer militarmente. A única solução é então um acordo político, sem esquecer a grave questão humana.»

Desastre ecológico

Esta situação de degradação económica, de pobreza, de conflitos, pesa muito sobre o ambiente, um outro tema muito referido nas intervenções. «Áreas inteiras são destruídas devido à desflorestação, extracção do petróleo, escoamento dos resíduos tóxicos, contentores de plástico e materiais de celofane», disse o bispo de Ugorij. Está em curso um desastre ecológico. O bispo afirma que «os actuais desafios ecológicos são o resultado dos pecados do homem: egoísmo, avidez, falta de sensibilidade para com os danos ambientais e incapacidade de assumir o cuidado do planeta». E, por fim, acrescenta: «A Igreja em África tem de suscitar uma “conversão ecológica” através de uma educação intensiva. Tem de educar as pessoas em África a serem mais sensíveis face ao crescente desastre ambiental e a necessidade de o reduzir.» E isto sem esquecer o desastre ecológico global (alterações climáticas) que será precisamente a África, o continente com menos emissões de gazes com efeito estufa, a pagar seriamente a factura. «A Igreja em África», disse o bispo de Tororo (Uganda), D. Lote, «deveria enfrentar neste sínodo seriamente a questão das alterações climáticas como obrigação moral para todos. Este sínodo deveria encontrar vias de reconciliação entre o planeta, enquanto “vítima” e o homem enquanto “agressor”.»
Análises lúcidas, por vezes impiedosas, que escavam em profundidade para nos ajudar a compreender as razões dos dramas deste continente.

Evangelho

Alguém poderia perguntar: «Mas que tem isto a ver com o Evangelho?» O presidente da Conferência Episcopal do Congo, L. P. Mbuyu, bispo de Kinkala, responde: «A Igreja tem uma missão profética urgente em África. Perante o espectáculo desolador oferecido ao mundo pelo continente africano, cujos povos são praticamente vítimas de roubo da soberania que lhes caberia, muitas vezes por mão dos seus próprios filhos, a Igreja deve dirigir um olhar lúcido sobre todas as situações em que a dignidade humana é espezinhada, deve analisar as causas, revelar os seus mecanismos e chamar em causa, sem se cansar, os responsáveis. O risco é que, perante tantas injustiças e explorações, a Igreja deixe de se comover, se habitue ao facto e deixe de falar disso, tornando-se assim cúmplice da infelicidade das populações, quando pelo contrário a sua missão é ser «voz dos sem voz.»


ALEX ZANOTELLI (Alem Mar, Fevereiro 2010)

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