No Sul do Sudão sopram ventos de violência. Confrontos alimentados por milícias próximas do Governo de Cartum aumentam a instabilidade à medida que se aproximam as eleições de Abril. O exército nacional está por construir e a força militar das Nações Unidas fracassa no cumprimento da sua missão de paz.
Nos últimos meses, registou-se no Sul do Sudão um dramático aumento da violência entre os vários grupos étnicos. O arcebispo Daniel Deng Bul, primaz da igreja episcopal de Sudão-Juba, lançou um apelo à comunidade internacional: «A violência no Sul é hoje o principal e o maior problema do país. Velhos atritos são reactivados e fomentados para causar devastação entre as populações e desestabilizar o país. Nós sabemos claramente quem está a orquestrar tudo isto. Por diversos testemunhos recolhidos, é evidente que contrabando de armas, rearmamento e incitamento ao confronto étnico é obra dos inimigos do Acordo de Paz.»
Agressões a comunidades
Em Outubro, Mons. Hiiboro Kussala, bispo de Tombura-Yambio, em Roma para o Sínodo Africano, numa entrevista à Rádio Vaticano falou de agressões a comunidades cristãs: «Matam, queimam casas e igrejas. Os rebeldes circulam com novas fardas e novas armas recebidas do Governo de Cartum. É evidente que alguém procura fazer que o Sul do Sudão mergulhe no marasmo, para que enfraqueça a paz necessária à preparação e celebração do referendo, previsto para 2011.»
Também os líderes do SPLM levantam o dedo contra Cartum. O que os fez suspeitar foi o facto de as novas milícias se mostrarem muito organizadas e bem armadas. O general Oyai Deng Ajak, ministro da Cooperação Regional do Governo do Sul, diz: «A suspeição, corroborada por evidências, é que a nossa contraparte no Norte esteja a treinar, a armar e a enviar para o Sul antigos grupos de milicianos que já combateram ao lado do exército de Cartum no decurso da guerra.» Viram-se aviões Antonov voar a baixa altitude e a largar caixas cheias de armas e munições junto dos campos dos rebeldes do Exército de Resistência do Senhor (LRA, na sigla inglesa), bem como helicópteros a aterrar em aldeias habitadas por determinados grupos étnicos e a abastecê-los de material bélico.
Fins pessoais
Envolvidos nesta escalada de violência estão também os políticos sul-sudaneses e antigos líderes de milícias, sempre prontos a explorar as tensões étnicas para fins pessoais. Depois de um confronto armado em Janeiro de 2009 entre grupos collo e grupos dincas no Malakal, um líder collo confessou a John Ashworth, investigador que desde há anos segue de perto o evoluir da situação no Sudão: «Se os Dincas recebem armas dos seus irmãos de Juba, que ocupam lugares de liderança no SPLM e no Governo do Sul, nós não podemos deixar de nos dirigirmos a Cartum.» Muitos actos de violência e de banditismo em Juba e noutras zonas mais a sul são imputáveis a grupos do SPLM: junto das fronteiras com o Quénia e o Uganda, antigos soldados do exército do Sul estão ainda hoje a operar fora do controlo do SPLM.
São claros os objectivos daqueles que orquestram estas violências: desacreditar o Acordo de Paz, atrasar a sua aplicação, criar a sensação de que o Sul não é capaz de se governar sozinho e fazer surgir a dúvida na comunidade internacional de que uma eventual separação do Sul se transformará num banho de sangue; e, ao mesmo tempo, oferecer a Cartum uma desculpa para manter as suas tropas em algumas regiões meridionais consideradas estratégicas por razões de segurança nacional.
Muitas vezes acusou-se o Governo do Sul de não querer usar as suas tropas para bloquear logo à nascença as violências ou travar os conflitos. De facto, durante muito tempo, a opção do Governo de Juba foi de não intervir em confrontos definíveis como «conflitos étnicos ou civis». O facto não deve surpreender. De recordar que, se é verdade que os fautores das violências são na maioria membros de antigas milícias locais, é igualmente verdade que também as tropas do SPLA destacadas depois da assinatura do Acordo de Paz para as diversas zonas foram elas mesmas milícias locais, dedicadas a assaltos contra grupos rivais com fins de saque ou represália. Portanto, um envio de soldados do SPLA contra uma milícia local não seria visto pela população como uma intervenção de força super partes ao serviço de um governo neutral, mas de um dos muitos grupos rivais, e isso agravaria o conflito. Recentemente, todavia, o Governo do Sul alterou esta política não interventora e hoje procura garantir um certo nível de segurança, mesmo se, no dizer de muitos, ainda não suficiente.
Unidades de defesa
Durante as negociações que conduziram ao Acordo de Paz, o regime de Cartum insistira para que houvesse um único exército nacional, as Forças armadas sudanesas (FAS), no qual o SPLA (o braço armado do SPLM) seria integrado. O SPLM, pelo contrário, convencido de que somente a manutenção de uma robusta força militar do Sul poderia garantir que o acordo fosse aplicado em todas as suas vertentes, obstinou-se pela constituição de duas forças armadas distintas: as FAS a norte e o SPLA a sul.
No momento da assinatura, optou-se por um compromisso: ao lado das FAS no Norte e do SPLA no Sul, haveria unidades mistas integradas (UMI) de defesa (50 por cento FAS, 50 por cento SPLA), destacadas em localidades-chave tanto no Norte como no Sul. O compromisso, porém, não funcionou. As UMI não se encontram sob um comando único. Muitas vezes as duas facções que as compõem têm de ser alojadas em dois aquartelamentos distintos e distantes. Em várias localidades verificaram-se confrontos armados entre soldados das FAS e militares do SPLA destinados à mesma UMI.
Muitas armas
Se se pergunta às populações do Sul qual é a prioridade a seguir, a resposta é previsível: a retirada das demasiadas armas ainda em circulação na região. Os crimes praticados à mão armada são um grave problema em Juba e noutros lugares. Procurou-se lançar algumas iniciativas a este respeito, mas falta vontade política para alcançar esse objectivo. De resto, dá-se como certa a necessidade de se preparar para a próxima guerra, é óbvio que as armas serão deixadas nas mãos daqueles que apoiarão o esforço bélico. Quando muito, poderia avançar-se com uma política de desarmamento selectivo, isto é, algumas comunidades que se tinham alinhado com o Norte no decorrer da última guerra e que, com toda a probabilidade, sê-lo-ão mais uma vez por ocasião da próxima.
Houve tentativas de desarmamento nas regiões do Nilo Superior e de Jonglei, mas as modalidades empregadas conduziram a novos casos de violência. As comunidades a quem foram sequestradas as armas foram prontamente atacadas e dilapidadas pelos grupos vizinhos a quem as armas tinham sido deixadas. Em alguns casos, para desarmar as gentes foram empregadas antigas milícias pertencentes a um grupo inimigo, unidos ao SPLA.
É indispensável procurar outras vias para garantir a segurança. Alguém sugeriu a apreensão momentânea das armas até ao momento em que forem necessárias, ou eliminá-las das cidades e proibir os soldados de as trazer consigo quando não estão em serviço.
Missão UNMIS
Em 2004, poucos meses antes da assinatura do Acordo de Paz, durante um encontro de negociações, alguns líderes das igrejas sudanesas manifestaram-se defensores do envio para o país de uma força de paz da ONU, dotada de um amplo mandato. Um deles, porém, advertiu-os: «Atenção àquilo que pedem! Pensam que nos enviarão capacetes azuis canadianos, noruegueses ou sul-africanos? Ilusão! Vamos defrontar-nos com tropas enviadas por Estados árabes e muçulmanos.» Não se enganava.
A actual Missão da ONU no Sudão (Unmis) é formada na maioria por pessoal enviado por dois países muçulmanos, Bangladesh e Paquistão, por dois Estados que têm sede do petróleo sudanês, China e Índia, e por um país árabe, o Egipto, que se gaba desde há muito de direitos adquiridos sobre as águas do Nilo. Ninguém duvida do profissionalismo e neutralidade destes capacetes azuis. Mas destoa que, para manter a paz depois de uma guerra em que a questão étnica, a religião e os recursos petrolíferos foram factores determinantes, tenham sido impostos ao Sul do Sudão «tutores de paz» com evidentes ligações ao inimigo.
Segundo a opinião de muitos observadores internacionais, a missão de paz da ONU no Sul do Sudão foi profundamente decepcionante; em termos de capacidade de patrulhamento e de vigilância, foi um verdadeiro fracasso. Para não falar da sua mais total ignorância do contexto sociopolítico e da sua incapacidade de analisar de forma correcta a situação. Onde explodiram combates, os capacetes azuis ou primaram pela sua ausência, ou efectuaram intervenções totalmente ineficazes. Os escassos sucessos obtidos suscitam sérias dúvidas quanto à relação custo-benefício desta operação altamente dispendiosa (980,6 milhões de dólares orçamentados para o ano fiscal 2009-2010). A 30 de Setembro de 2009, a força Unmis no Sul do Sudão era constituída por 13.422 pessoas (8.793 soldados, 486 observadores militares, 682 polícias, 797 civis internacionais, 2.395 civis locais e 271 voluntários da ONU).
FRANCO MORETTI (Alem Mar, Fevereiro, 2010)
Nos últimos meses, registou-se no Sul do Sudão um dramático aumento da violência entre os vários grupos étnicos. O arcebispo Daniel Deng Bul, primaz da igreja episcopal de Sudão-Juba, lançou um apelo à comunidade internacional: «A violência no Sul é hoje o principal e o maior problema do país. Velhos atritos são reactivados e fomentados para causar devastação entre as populações e desestabilizar o país. Nós sabemos claramente quem está a orquestrar tudo isto. Por diversos testemunhos recolhidos, é evidente que contrabando de armas, rearmamento e incitamento ao confronto étnico é obra dos inimigos do Acordo de Paz.»
Agressões a comunidades
Em Outubro, Mons. Hiiboro Kussala, bispo de Tombura-Yambio, em Roma para o Sínodo Africano, numa entrevista à Rádio Vaticano falou de agressões a comunidades cristãs: «Matam, queimam casas e igrejas. Os rebeldes circulam com novas fardas e novas armas recebidas do Governo de Cartum. É evidente que alguém procura fazer que o Sul do Sudão mergulhe no marasmo, para que enfraqueça a paz necessária à preparação e celebração do referendo, previsto para 2011.»
Também os líderes do SPLM levantam o dedo contra Cartum. O que os fez suspeitar foi o facto de as novas milícias se mostrarem muito organizadas e bem armadas. O general Oyai Deng Ajak, ministro da Cooperação Regional do Governo do Sul, diz: «A suspeição, corroborada por evidências, é que a nossa contraparte no Norte esteja a treinar, a armar e a enviar para o Sul antigos grupos de milicianos que já combateram ao lado do exército de Cartum no decurso da guerra.» Viram-se aviões Antonov voar a baixa altitude e a largar caixas cheias de armas e munições junto dos campos dos rebeldes do Exército de Resistência do Senhor (LRA, na sigla inglesa), bem como helicópteros a aterrar em aldeias habitadas por determinados grupos étnicos e a abastecê-los de material bélico.
Fins pessoais
Envolvidos nesta escalada de violência estão também os políticos sul-sudaneses e antigos líderes de milícias, sempre prontos a explorar as tensões étnicas para fins pessoais. Depois de um confronto armado em Janeiro de 2009 entre grupos collo e grupos dincas no Malakal, um líder collo confessou a John Ashworth, investigador que desde há anos segue de perto o evoluir da situação no Sudão: «Se os Dincas recebem armas dos seus irmãos de Juba, que ocupam lugares de liderança no SPLM e no Governo do Sul, nós não podemos deixar de nos dirigirmos a Cartum.» Muitos actos de violência e de banditismo em Juba e noutras zonas mais a sul são imputáveis a grupos do SPLM: junto das fronteiras com o Quénia e o Uganda, antigos soldados do exército do Sul estão ainda hoje a operar fora do controlo do SPLM.
São claros os objectivos daqueles que orquestram estas violências: desacreditar o Acordo de Paz, atrasar a sua aplicação, criar a sensação de que o Sul não é capaz de se governar sozinho e fazer surgir a dúvida na comunidade internacional de que uma eventual separação do Sul se transformará num banho de sangue; e, ao mesmo tempo, oferecer a Cartum uma desculpa para manter as suas tropas em algumas regiões meridionais consideradas estratégicas por razões de segurança nacional.
Muitas vezes acusou-se o Governo do Sul de não querer usar as suas tropas para bloquear logo à nascença as violências ou travar os conflitos. De facto, durante muito tempo, a opção do Governo de Juba foi de não intervir em confrontos definíveis como «conflitos étnicos ou civis». O facto não deve surpreender. De recordar que, se é verdade que os fautores das violências são na maioria membros de antigas milícias locais, é igualmente verdade que também as tropas do SPLA destacadas depois da assinatura do Acordo de Paz para as diversas zonas foram elas mesmas milícias locais, dedicadas a assaltos contra grupos rivais com fins de saque ou represália. Portanto, um envio de soldados do SPLA contra uma milícia local não seria visto pela população como uma intervenção de força super partes ao serviço de um governo neutral, mas de um dos muitos grupos rivais, e isso agravaria o conflito. Recentemente, todavia, o Governo do Sul alterou esta política não interventora e hoje procura garantir um certo nível de segurança, mesmo se, no dizer de muitos, ainda não suficiente.
Unidades de defesa
Durante as negociações que conduziram ao Acordo de Paz, o regime de Cartum insistira para que houvesse um único exército nacional, as Forças armadas sudanesas (FAS), no qual o SPLA (o braço armado do SPLM) seria integrado. O SPLM, pelo contrário, convencido de que somente a manutenção de uma robusta força militar do Sul poderia garantir que o acordo fosse aplicado em todas as suas vertentes, obstinou-se pela constituição de duas forças armadas distintas: as FAS a norte e o SPLA a sul.
No momento da assinatura, optou-se por um compromisso: ao lado das FAS no Norte e do SPLA no Sul, haveria unidades mistas integradas (UMI) de defesa (50 por cento FAS, 50 por cento SPLA), destacadas em localidades-chave tanto no Norte como no Sul. O compromisso, porém, não funcionou. As UMI não se encontram sob um comando único. Muitas vezes as duas facções que as compõem têm de ser alojadas em dois aquartelamentos distintos e distantes. Em várias localidades verificaram-se confrontos armados entre soldados das FAS e militares do SPLA destinados à mesma UMI.
Muitas armas
Se se pergunta às populações do Sul qual é a prioridade a seguir, a resposta é previsível: a retirada das demasiadas armas ainda em circulação na região. Os crimes praticados à mão armada são um grave problema em Juba e noutros lugares. Procurou-se lançar algumas iniciativas a este respeito, mas falta vontade política para alcançar esse objectivo. De resto, dá-se como certa a necessidade de se preparar para a próxima guerra, é óbvio que as armas serão deixadas nas mãos daqueles que apoiarão o esforço bélico. Quando muito, poderia avançar-se com uma política de desarmamento selectivo, isto é, algumas comunidades que se tinham alinhado com o Norte no decorrer da última guerra e que, com toda a probabilidade, sê-lo-ão mais uma vez por ocasião da próxima.
Houve tentativas de desarmamento nas regiões do Nilo Superior e de Jonglei, mas as modalidades empregadas conduziram a novos casos de violência. As comunidades a quem foram sequestradas as armas foram prontamente atacadas e dilapidadas pelos grupos vizinhos a quem as armas tinham sido deixadas. Em alguns casos, para desarmar as gentes foram empregadas antigas milícias pertencentes a um grupo inimigo, unidos ao SPLA.
É indispensável procurar outras vias para garantir a segurança. Alguém sugeriu a apreensão momentânea das armas até ao momento em que forem necessárias, ou eliminá-las das cidades e proibir os soldados de as trazer consigo quando não estão em serviço.
Missão UNMIS
Em 2004, poucos meses antes da assinatura do Acordo de Paz, durante um encontro de negociações, alguns líderes das igrejas sudanesas manifestaram-se defensores do envio para o país de uma força de paz da ONU, dotada de um amplo mandato. Um deles, porém, advertiu-os: «Atenção àquilo que pedem! Pensam que nos enviarão capacetes azuis canadianos, noruegueses ou sul-africanos? Ilusão! Vamos defrontar-nos com tropas enviadas por Estados árabes e muçulmanos.» Não se enganava.
A actual Missão da ONU no Sudão (Unmis) é formada na maioria por pessoal enviado por dois países muçulmanos, Bangladesh e Paquistão, por dois Estados que têm sede do petróleo sudanês, China e Índia, e por um país árabe, o Egipto, que se gaba desde há muito de direitos adquiridos sobre as águas do Nilo. Ninguém duvida do profissionalismo e neutralidade destes capacetes azuis. Mas destoa que, para manter a paz depois de uma guerra em que a questão étnica, a religião e os recursos petrolíferos foram factores determinantes, tenham sido impostos ao Sul do Sudão «tutores de paz» com evidentes ligações ao inimigo.
Segundo a opinião de muitos observadores internacionais, a missão de paz da ONU no Sul do Sudão foi profundamente decepcionante; em termos de capacidade de patrulhamento e de vigilância, foi um verdadeiro fracasso. Para não falar da sua mais total ignorância do contexto sociopolítico e da sua incapacidade de analisar de forma correcta a situação. Onde explodiram combates, os capacetes azuis ou primaram pela sua ausência, ou efectuaram intervenções totalmente ineficazes. Os escassos sucessos obtidos suscitam sérias dúvidas quanto à relação custo-benefício desta operação altamente dispendiosa (980,6 milhões de dólares orçamentados para o ano fiscal 2009-2010). A 30 de Setembro de 2009, a força Unmis no Sul do Sudão era constituída por 13.422 pessoas (8.793 soldados, 486 observadores militares, 682 polícias, 797 civis internacionais, 2.395 civis locais e 271 voluntários da ONU).
FRANCO MORETTI (Alem Mar, Fevereiro, 2010)
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