quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

POSSE ABUSIVA DA TERRA EM ÁFRICA


(Society of African Missions, Ficha «Justiça» nº 8)

Século XXI – A posse abusiva de terra em África

Desde 2007 que terrenos três vezes maiores que a Irlanda têm sido desviados por investidores estrangeiros para neles se fazerem mega quintas em África.
Estão em curso negociações para se fazer o mesmo. Enquanto muitos governos africanos acolhem este investimento, algumas agências internacionais, ONGs e populações locais não são tão entusiastas. Alguns vêem os arrendamentos de terra como uma posse abusiva, que apenas difere da colonização do séc. XIX porque envolve agentes diferentes. O relatório da ONU - «Posse abusiva da terra ou Oportunidade de Desenvolvimento» declara de forma diplomática que o investimento estrangeiro «podia traduzir-se em boas notícias se os objectivos dos arrendatários da terra forem compatíveis com as necessidades de investimento dos países (hospedeiros)». Numa perspectiva menos diplomática, isto significa que os arrendamentos ainda não trouxeram o investimento em agricultura responsável de que a África necessita.

Factos sobre os arrendamentos

Os Estados do Golfo, a China, a Coreia do Sul e a Índia arrendaram enormes extensões de terra africana. Empresas produtoras de biocombustível de Inglaterra, Alemanha, Suécia e de outros países europeus também investiram, em menor escala. A terra é arrendada por períodos até 99 anos para produzir arroz, milho, cana-de-açúcar, frutos e legumes, e sementes para biocombustível como óleo de palma e jatropha.
Os projectos de arrendamento de terra existem em pelo menos 17 países africanos. Se o investimento estrangeiro em terra africana não é novidade, o que é diferente agora é a dimensão e o facto de os arrendamentos serem agora feitos entre governos e grandes corporações e não entre empresas. No passado o investimento ajudou as economias locais através do comércio e emprego. Um arrendamento actual em Moçambique permite que 10 000 chineses produzam sementes para exportar para a China, cortando qualquer benefício local.
O arrendamento de terra tornou-se num assunto em 2008 quando o preço dos alimentos básicos duplicou. Temendo a sua vulnerabilidade, países ricos mas com terra pobre arável, como a Arábia Saudita, o Kuwait e o Qatar, aplicaram milhões de dólares em arrendamentos a longo prazo a fim de assegurarem a futura segurança alimentar. Também as alterações alimentares resultantes do crescimento das economias da China, Coreia do Sul e Índia, levaram a uma maior procura de terra arável. A acrescentar a estes factores, deu-se a repentina procura de biocombustível. Estes três factores juntos levaram a um aumento de procura de terra arável. Como a terra em África é abundante e, comparativamente, a mais barata no mundo, é a que mais atrai os investidores. Cerca de vinte países estrangeiros têm hoje terra arrendada em África.
O secretismo que ronda os acordos de arrendamento é geral – ninguém sabe exactamente quantos hectares estão arrendados, e as informações sobre os termos desses contratos são vagas e desconhecidas. O arrendamento de terra arável trouxe emprego significativo em algumas zonas, mas em outras os trabalhadores contratados não são locais. Em alguns países, como na Zâmbia, o produto da terra entra nos mercados locais e beneficia a população local, mas noutras zonas os produtos da terra são destinados à exportação. O benefício em termos de desenvolvimento de infra-estruturas tem sido desigual e mesmo onde isto aconteceu, por exemplo na construção de estradas, pouco tem sido feito a nível da manutenção.
Uma coisa é clara: até hoje os benefícios para os africanos não têm sido proporcionais aos dos arrendatários. Os africanos só vêem os restos.

Posse da terra: é a compra ou arrendamento de vastas áreas de terra por países ricos, por países onde os alimentos escasseiam ou por investidores privados, feita a países pobres ou em desenvolvimento, a fim de produzirem produtos agrícolas para exportação.

A Terra, um recurso que tem de ser protegido – Bispos Africanos

Um relatório recente do Sínodo dos Bispos Africanos criticou o secretismo que envolve os contratos de arrendamento de terra e enfatizou a necessidade de proteger a terra como recurso para as gerações futuras.
«Se a Igreja pretende ser a voz dos mais pobres, deve trazer à discussão pública este assunto e deve defender os direitos à terra das comunidades tradicionais contra investidores gananciosos e líderes corruptos.»
A actual forma de arrendamento de terra em África contradiz de muitas maneiras os ensinamentos da Igreja e os princípios sociais católicos. As comunidades locais não são geralmente envolvidas nas decisões acerca da terra, os produtos destinam-se sobretudo à exportação e existem preocupações quanto aos efeitos que a dimensão industrial das terras arrendadas poderá ter a longo prazo sobre o ambiente.

Motivos de preocupação

Investidores ambiciosos enfatizam os benefícios de maiores colheitas híbridas e de desenvolvimento do emprego e de infra-estruturas. Há governos que, ansiosos por estes benefícios, acolhem este investimento. Opiniões contrárias variam da desconfiança à crença de que o arrendamento é um «roubo neo-colonialista». Um relatório do IFPRI (Instituto Internacional de Pesquisa para a Política Alimentar) resume a razão para a oposição: «a desigualdade das relações de poder nos contratos de aquisição de terra pode pôr em risco a sobrevivência dos pobres. Uma vez que o Estado detém muitas vezes formalmente a propriedade da terra, os pobres correm o risco de serem desalojados em favor do investidor, sem terem sido consultados ou compensados.» Muitas vezes é a elite local que beneficia, enquanto os pobres acabam por ficar em piores condições porque lhes é negado o acesso a terra já cultivada, a terra para pastagem, a floresta ou a água.
Os governos dos países hospedeiros invocam geralmente que a terra que oferecem é pertença do Estado. Por lei, isto pode ser tecnicamente verdade, mas de facto os direitos comuns de ocupação são reconhecido há gerações. Nos contratos de investimento estrangeiro estes direitos são ignorados e a população expulsa. Esta injustiça alimenta potenciais conflitos. O secretismo, a corrupção e a exclusão da população local das negociações aumentam a indignação. Em Madagáscar, a agitação em torno de 1,3 milhões de hectares contribuiu para o derrube do governo. Muitos observadores acreditam que este tipo de conflito é inevitável.
Existem também preocupações sobre o efeito que a potencial instabilidade política em muitos países africanos terá nos investidores. Terão estes cuidado com o ambiente e as economias locais? Ou a tentação do maior lucro possível e mais rápido possível levará a melhor? A resposta a estas perguntas será decisiva para definir se o arrendamento de terras é uma posse abusiva neo-colonialista ou um investimento benéfico para os africanos.

Jatropha, biocombustível e Tanzânia

Os biocombustíveis podem ser feitos de plantas como o milho, a cana-de-açúcar e o óleo de palma, mas é a Jatropha – a «planta maravilha» - que países como o Gana, Angola, Etiópia e Tanzânia estão a cultivar intensivamente. A vantagem é que esta planta pode ser cultivada em terra árida, que não é adequada a outras culturas.
Na Tanzânia, as plantações de jatropha estão a causar problemas. Em 2009, o investimento foi suspenso em consequência da agitação em torno do desalojamento de agricultores e a conversão de alimentos em produtos para biocombustível. Além disso, a irrigação necessária a estas plantações provocou faltas de água. Há também provas de negócios obscuros com as populações locais, em que estes receberam menos de $10 por hectare de terra. Os locais estão a perder e não estão a ser tomadas medidas relativas aos efeitos da desertificação e uso de pesticidas.
Esta situação exemplifica os efeitos da falta de políticas sobre o uso da terra nos países africanos. Em resposta, o governo da Tanzânia quer publicar este ano algumas directivas nacionais sobre o investimento em biocombustível. Também está consciente de que isto pode não ser suficiente e de que a protecção do ambiente e dos direitos das populações exige legislação e aplicação das leis. Embora este seja um pequeno início, é um movimento na direcção certa, muito à frente de outros países africanos.

Um passo à frente – código de conduta

O arrendamento de terra é um fait accompli. Aceitando isto, a ONU e as ONGs estão a trabalhar no sentido de desenvolverem um código internacional que permita que as duas partes tenham benefícios.
Aderir a este código internacional seria opcional e pouco limitaria a corrupção local, mas é um primeiro passo que vale a pena dar. Este código estabelecerá princípios como: respeito dos direitos comuns; partilha de benefícios entre a população local (i.e. não apenas trazer trabalhadores) e aumento da transparência (redução de oportunidades para a corrupção). No entanto, as medidas têm de ser alargadas.
«A longo prazo, é do interesse dos investidores, dos governos hospedeiros e das populações locais assegurarem que estes acordos (arrendamentos) são devidamente negociados, que as práticas são sustentáveis e que os benefícios são partilhados. Não há organismo que, sozinho, assegure este processo. Mas é necessária a combinação da lei internacional, das políticas dos governos e o envolvimento da sociedade civil, dos meios de comunicação social e das comunidades locais, para minimizar ameaças e obter benefícios.» (Land Grabbing by Foreign Investors in Developing Countries, Risks and Opportunities, IFPRI 2009)

Não é ainda possível medir o impacto que terá o arrendamento da terra. Ainda não decorreu tempo suficiente para se materializarem os benefícios prometidos. No entanto, até agora o balanço pende para um resultado negativo. Para já, o juiz está ausente e o julgamento adiado. Um comentador disse, prudentemente, que «deve haver um olhar atento, esperançoso, mas ponderado, sobre os progressos do arrendamento de terra em África.»

Quem beneficia?

Um exame aos negócios com a terra em cinco países africanos identificou o seguinte:
- os governos têm um papel fundamental na atribuição de terras para arrendamento.
- os benefícios aparecem sob a forma de compromissos por parte dos investidores, criação de emprego e desenvolvimento de infra-estruturas – NÃO na forma de pagamento em dinheiro.
- apesar de certos países terem leis que exigem envolvimento local e benefícios, há grandes discrepâncias entre o que está escrito e a prática no terreno.
- há falta de mecanismos legais ou processuais para proteger os direitos locais, interesses, sobrevivência e bem-estar.
- a falta de transparência nas negociações cria um campo favorável à corrupção e a contratos que não maximizam o interesse público.
- os contratos analisados tendem a ser simplistas, comparados com a realidade económica da transacção.
- os mecanismos que asseguram o cumprimento dos compromissos pelos investidores são tratados com cláusulas vagas, quando existem.
Os pontos acima mencionados mostram que a população local é o último a ser beneficiado.

Fonte: «Land Grab or Development Opportunity» – an interagency collaboration led by the UN.


Esta ficha foi preparada pelo Secretariado da Justiça da Society of African Missions, Wilton, Cork. Email: jpic@sma.ie. Website: http://www.sma.ie/.

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