quarta-feira, 10 de março de 2010

Direitos humanos em África: questão de dignidade


A Declaração Universal dos Directos Humanos tem 60 anos, acabados de celebrar. Em muitos países africanos, ela continua letra morta. Um panorama que está a mudar, graças ao protagonismo da sociedade civil e às organizações africanas que lutam pela defesa dos direitos humanos.

A 10 de Dezembro passado, cumpriram-se 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, princípios jurídicos fundamentais que são inerentes a todos os indivíduos e povos, mas de que são privados ainda milhões de africanos. Contudo, a grande esperança está no crescente protagonismo que a sociedade civil africana tem vindo a adquirir, que em centenas de movimentos, associações e redes exigem o respeito dos direitos humanos e a universalização da justiça.
O ganês Kofi Annan dizia em 2005, quando ainda era secretário-geral das Nações Unidas: «Não teremos desenvolvimento sem segurança, não teremos segurança sem desenvolvimento e não teremos nem segurança nem desenvolvimento enquanto não se respeitarem os direitos humanos.» De facto, a aposta na segurança e a busca da paz foi uma das grandes prioridades do anterior representante máximo da ONU no continente negro. Não em vão, na actualidade existem missões de manutenção de paz no activo em sete países: República Democrática do Congo, Sudão, Darfur, Chade, República Centro-Africana, Costa do Marfim e Libéria, com um total de 61 584 capacetes azuis. É que sem paz não pode haver respeito pelos direitos humanos, e a garantia destes está intimamente ligada aos avanços no progresso e bem-estar das populações. Na África, ao longo destas seis décadas ocorreram grandes mudanças, pois em 1948 ainda não tinham começado os processos de descolonização e hoje todos os países são, pelo menos politicamente, independentes e soberanos, e desfrutam, com maior ou menor grau, de Estados de Direito. Contudo, os direitos humanos foram sistematicamente espezinhados e negados a gerações inteiras de africanos. A chegada das independências não foi garantia, desgraçadamente, de um maior respeito destas prerrogativas, se bem que a maioria delas tenham sido acolhidas nas Constituições recém-estreadas.

Direitos espezinhados

Três dos direitos básicos, como o direito à vida, à liberdade e à segurança de milhões de africanos, não foram respeitados nem garantidos devido aos múltiplos conflitos que os grandes blocos da Guerra Fria transferiram para o solo africano.
A partir da queda do Muro de Berlim em 1989, as grandes potências, sobretudo a França e os Estados Unidos, não duvidaram em incitar a rebeliões, guerrilhas ou apoiar regimes autocráticos, com o objectivo de continuarem a controlar recursos naturais e matérias-primas, deixando um rasto de milhões de vítimas civis pelo caminho, como está a suceder na República Democrática do Congo. Só entre 1990 e 2005, 23 países africanos foram afectados por conflitos, alguns de longa duração. Basta recordar alguns dos números «do horror»: em Angola, os 27 anos de guerra, o conflito mais longo de África (1975-2002), deixaram uma esteira de 500 000 mortos, 4 milhões de refugiados e 100 000 mutilados; a guerra entre o Norte e o Sul do Sudão, que durou 22 anos (1983-2005), ceifou a vida de dois milhões de pessoas e mais de quatro milhões de refugiados e deslocados; as 70 000 mortes na Serra Leoa e outras centenas de milhares na vizinha Libéria; as 800 000 vidas do genocídio ruandês; os cinco milhões de mortos sacrificados na guerra da República Democrática do Congo (1997-2003), o conflito do Norte do Uganda, com 30 000 crianças sequestradas transformadas em soldados…
Onde está aqui o respeito pelo direito à vida? Além disso, os conflitos armados representaram para África uma perda nestes 15 anos de 300 000 milhões de dólares, segundo um relatório publicado pela Oxfam Internacional, IANSA e Saferworld. Um montante mais que suficiente para cobrir o acesso a água potável, a saneamento adequado, a escolarização dos 45 milhões de crianças sem acesso a educação… Não se pode obviar que na África Subsariana um quarto da população – cerca de 210 milhões de pessoas – vivem com menos de um dólar por dia, algo que cerceia os direitos ao bem-estar e a uma vida digna acolhidos também nesta lei das leis. Por último, ainda hoje os conflitos abertos que fazem correr sangue no continente – Darfur, Somália, Leste do Congo, Chade, República Centro-Africana – e os conflitos pós-eleitorais do Quénia e do Zimbabué representam uma negação dos direitos mais básicos de milhões de africanos.

Mudanças profundas

Nestas décadas, o continente conheceu profundas mudanças políticas, económicas e sociais. Também se tem de salientar o fim do regime do apartheid – literalmente, segregação –, baseado na discriminação económica, política e social por razões de raça, que acabou em 1994 e que paradoxalmente começou a funcionar no mesmo ano da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Um dos avanços mais destacados nestas décadas é a tendência dos Estados africanos para abolirem a pena de morte. É o caso de Ruanda, que a aboliu em Julho de 2007; do Gabão, que fez o mesmo em Setembro do mesmo ano; ou do Mali, que apresentou ao Parlamento um projecto de lei abolicionista. Ainda assim, houve execuções na Etiópia, Guiné Equatorial, Somália, Sudão e Uganda, países onde os tribunais militares ordenaram a execução de soldados. Também, e apesar dos escandalosos casos de violência sexual exercida no Leste do Congo, Costa do Marfim e Burundi, temos de aplaudir que alguns países tenham legislado durante 2007 contra os delitos de violência intrafamiliar, como o caso do Gana, Serra Leoa ou Quénia, onde foi aprovada em 2006 uma lei contra delitos de natureza sexual.
No papel, todas as Constituições africanas contemplam e acolhem os direitos humanos, outro assunto é que se cumpram. Além disso, todos os países membros da actual União Africana assinaram a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, proclamada em 1987 em Banyul (Gâmbia). Esta carta instituía nos seus artigos 30-33 a Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos, encarregada de fomentar os direitos humanos na África. A Carta faz uma referência explícita à Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Contudo, os seus autores quiseram dar uma identidade própria que destacasse as particularidades africanas. Assim, reconhecem-se o direito à descolonização, à livre disposição dos recursos naturais, à paz... E, sobretudo, realçam que estes direitos não devem ser apenas inerentes ao indivíduo, mas que se aplicam também a um grupo ou colectividade, aos povos africanos, reconciliando-se assim com a tradição africana mais caracterizada pelo comunitarismo que pelo individualismo.

Para uma justiça universal

Para tornar efectivos os direitos acolhidos na Carta, a Comissão da União Africana pôs em funcionamento em 2004 o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos. Agora basta dotá-lo dos mecanismos e do pessoal especializado para tornar efectivas as suas competências.
Também a entrada em vigor do Tribunal Penal Internacional (TPI) em 2002 marca um autêntico marco histórico neste sentido, cujo objectivo primordial é julgar todos os que possam ter cometido crimes contra a humanidade ou crimes de guerra. Em Julho passado, o procurador-geral do TPI, Luis Moreno Ocampo, emitia uma ordem de detenção contra o presidente sudanês Omar el-Bashir, um facto sem precedentes na história do direito internacional. O facto de na África se concentrarem vários processos abertos contra ex-presidentes ou líderes – como é o caso do ex-presidente chadiano, Hissène Habré, ou o ex-presidente liberiano, Charles Taylor, acusado de crimes de guerra durante o conflito da Serra Leoa, ou a ordem de busca e captura de Joseph Kony, líder do Exército de Libertação do Senhor e responsável do sequestro de 30 000 crianças no Norte do Uganda – abriu o debate sobre se o TPI foi criado unicamente para os países pobres. São vários os juristas africanos que questionaram que, por exemplo no caso do Sudão, o processo aberto contra o seu presidente cria obstáculos ao delicado processo de paz.

Despertar as consciências

Talvez precisamente porque as situações de injustiça são mais clamorosas na África, é inquestionável o protagonismo que adquiriram a sociedade civil no momento de tomar consciência dos seus direitos e exigir o seu cumprimento. Cada vez há mais membros de movimentos, redes, instituições da Igreja e ONG que aderem a espaços globais – o Fórum Social Mundial, por exemplo – como âmbitos de alternativas perante as injustiças, sob o lema «Outro mundo é possível».
Aminata Traoré, conhecida altermundialista e impulsionadora do Fórum Social Africano, além de ex-ministra da Cultura do Mali, considera fundamental, para que o continente saia da opressão, «o despertar das consciências dos africanos e africanas; a organização da resistência à mundialização neoliberal e a proposta de alternativas à submissão dos nossos Estados às nações ricas e às instituições financeiras internacionais».
Trabalhar para que os direitos humanos sejam uma realidade na África – como estão a fazer nas diversas comissões de justiça e paz dependentes de órgãos eclesiais na África milhares de africanos, à semelhança de outros organismos internacionais, nacionais e locais – é um dos aspectos mais esperançadores que se têm de realçar na comemoração dos 60 anos de uma declaração de direitos universais que ainda estão muito longe de serem usufruídos pela imensa maioria das populações africanas.


África Gerardo Gonzalez, Alem Mar, Janeiro 2009

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